
Na biblioteca, no emaranhado de pessoas com seus notebooks, celulares, fones de ouvido, reconheço alguns leitores, silenciosos e acanhados. Escondem-se em cantos, uns tímidos, outros sombrios, reservam as suas horas para aventurar-se pelas páginas de livros que daqui, não consigo saber quais são, tento adivinhar.
As pernas balançam com o mar que ondula nas páginas, as lágrimas querem vir à tona no livro em que a senhora se entrega, outro sorri com o reencontro ou sarcasmo da personagem.
O que estas pessoas estão lendo?
O que as faz abrir a página? Comungam do mesmo vício e obsessão que trago comigo?
Num dia destes, um senhor, tão agitado quanto eu, percebeu o meu interesse sobre o que estava lendo. Com o corpo cobriu o livro, não querendo revelar o seu segredo.
Coube a mim disfarçar a minha intrusão e ignorá-lo por minutos.
Percebendo a então indiferença que imprimi com primazia, por mais que eu seja um ator canastrão, fez seu jogo.
O leitor deu-me o seu palco e por lá, sorria, lacrimava, emaranhava os poucos cabelos, deveria ter uns 74 anos, fazia de mim o seu espectador literário.
Dei de acreditar que aquele leitor era um trapezista de páginas, equilibrava-se em cada parágrafo e com ele fazia as suas evoluções.
A profundidade do mergulho de sua leitura, fazia seu rosto metamorfosear, era solar, sombrio, abismal, emotivo, clown, a cada segundo uma nova respiração dava o ritmo.
De maneira deslocada, uma moça pede-me um periódico, sigo pelos corredores em busca do exemplar. Na capa da revista, penso ter visto o rosto do tal leitor, apago isto do pensamento, entrego a revista para ela. Tenho receio de olhar novamente para a capa, será que estou doente?
Olha-me assustada, devo estar péssimo, ansioso, delirante.
Começo a achar que uma gota de suor escorre da minha testa, devo estar com febre, procuro o senhor, encantador de palavras.
Ele se foi, apenas o guarda-chuva colorido permanece sobre a mesa.
Como pude não ler o seu nome na capa da revista?
Tive medo, com medo ninguém escreve, não é, Clarice Lispector?
Este medo me custou o mistério que alimento.
Resolvo investigar a moça e sua leitura, ela parece não gostar nem um pouco de mim, preciso ser cuidadoso.
Caminho pelas mesas, finjo procurar algo, sentada não me vê, a página está aberta.
Não consigo enxergar o seu nome, não consigo! Apenas o rosto já cansado me olha, enquanto baila no papel, mago dos parágrafos ondulantes.
A moça me descobre, não posso mais permanecer ali, retorno ao balcão de trabalho.
Passa a me observar, parece incomodada, disfarço, vou ao banheiro.
Quando retorno, em um movimento instantâneo e improvável, ergue a capa, parece querer me mostrar o rosto do velho leitor. Esta vestida de Colombina.
Estou a imaginar? É o que me pergunto.
Vejo os dois fazendo as suas evoluções, bailam de mãos dadas, ela e a revista.
Onde andará o equilibrista de parágrafos, o mergulhador de páginas, será que foi morar no livro?
Naquela revista tenho certeza que reside.
O tempo também parece dançar, o silêncio e o vazio engolem a biblioteca, cadeiras e mesas vazias, uma garota gentil escreve em seu notebook.
Procuro me concentrar, aquela mulher conhecia o senhor que estava lendo, por isso pediu aquele exemplar. Deve ser sua comparsa, escapou com a revista sem que eu percebesse.
Ruminador de silêncios e a sua fiel escudeira, a Colombina.
Embarco neste mistério, lembro o nome e o ano do periódico.
Será fácil encontrá-lo.
Desta vez não posso falhar.

Comentários de 2
A alegria da crônica são as alegorias do dia a dia. Este velho e saudoso hábito de frequentar bibliotecas encontrou um rival no Google. Um rival que não está a altera. E essa crônica de Fabio Santiago é uma prova e traz possíveis testemunhas dessa capacidade do livro criar solidão em um recinto repleto de pessoas vivendo emoções, experimentando sentimentos, dividindo momentos, criando memórias, em busca de sonhos, desejos, paixões, aventuras nas páginas escritas por alguém ausente/presente. Essa é a grande magia da literatura. A arte que Fabio Santiago em algum instante de sua vida escolheu para ser sua.
Mestre Bernardo! Mais uma vez muito obrigado. Emocionado com o seu mergulho no texto e os apontamentos sempre profundos. Feliz com este presente. O poeta que li na juventude, que descobri ser autor das músicas que me embalavam e me inspiram, conversando comigo, é um presente que a vida me deu. Eternamente grato, mestre Berna! Um brinde.