Crônica: Engano, por Fabiana Pacola

Ilustração de Valeria Scornaienchi

Sentiu que precisava desentristecer-se. E para isso precisava se ausentar do café fraco, da maleta rígida de couro porcaria, do bafo matinal do fretado, da ergonomia troncha do mobiliário, do manjar insosso, da pia respingada de pasta de outros dentes, das piadas incuráveis, dos comentários climáticos confinados entre o térreo e o décimo segundo andar, do gosto docenjoativo dos aniversários do mês, dos barbaengomadinhos de cabelos gelosos e colarinhos semiencardidos, do ar eternamente condicionado, das férias nunca gozadas. E foi em uma dessas frestas tristes em meio ao expediente que transfigurou-se num palhaço-avestruz, cabeça inteira fincada no chão e vestimentas de um colorido confortável. Nada via, nada ouvia, nada pensava. Estagnou-se por um tempo nesse devaneio. Quando retomou sua forma original, se deu conta que ninguém, absolutamente nobody, havia estranhado sua hibridez repentina. A rotina impregnada da corporação cegava possibilidades fortuitas – pensou – não se perdia tempo com delírios de outra ordem que não a lógica. Tomou para si essa brecha e usava e abusava do palhaço-avestruz em meio ao expediente e nem mais a cabeça fincava na terra. Notou que o disfarce o resgatava do marasmo, o mantinha entrosado junto dos colegas e muito, mas muito mais transigente. Decidiu incorporar de vez a alegoria de segunda a sexta-feira. Nesse tempo se tornou entusiasta dos projetos, participativo nas reuniões e até compartilhou felicidades típicas de horário comercial. Ocorreu que, em uma ocasião, foi chamado às pressas, ainda madrugada, para uma emergência no trabalho. Preocupado, esqueceu o palhaço-avestruz no cabide de casa. Chegou ainda roncando, engomado e mal passado. Se encontrava num estado de embriaguez amanhecida, portanto, nunca teve muita certeza, mas é quase fato que nessa manhã antecipada, um trapezista com cara de peixe, uma contorcionista-camaleoa, um mágico com feições de coelho e outras tantas figuras bizarras lhe desejaram bom dia no trajeto até sua mesa. Chacoalhou a cabeça, esfregou os olhos, desfumaçou o olhar, mas eles ainda estavam lá. Paralisou por uns instantes. Foi um olhar do avesso, oriundo da sua consciência que lhe apontou o dedo para o seu auto engano: inadvertidamente, naquele outro dia tinha, na verdade, se juntado à trupe e não se desgarrado dela. Era apenas a liberdade-palhaça pregando suas peças. Se desencorajou dos dias úteis seguintes quando se deu conta que a vida ordinária continuaria (des)contando seus dias. E desalegrou-se para sempre.

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