A escritora Fernanda Hamann publicou, pela EditoRia – selo editorial da Ria Livraria -, o livro Estilhaços de Junho. Em onze contos, a autora aborda uma fase na História do Brasil entre junho de 2013, com as manifestações que começaram por causa do aumento do preço da passagem de ônibus em São Paulo, ampliando para o resto do país, até o recente 8 de janeiro de 2023, quando as sedes dos Três Poderes foram invadidas e vandalizadas por eleitores do ex-presidente Jair Bolsonaro.
Com títulos que remetem a datas e acontecimentos marcantes, os contos assumem focos narrativos e linguagens diversificadas, como a multiplicidade caótica das pautas defendidas em Junho. Alternam-se as perspectivas de diferentes personagens, que tiveram as vidas aquecidas por uma década em brasa. Hamann evidencia agentes sociais participantes, direta ou indiretamente, desse momento, como a empregada doméstica, a madame, o policial militar, o jornalista, pastor evangélico, o black bloc. Estilhaços de Junho beira a realidade com a possibilidade de uma autoficção nacional.
O livro está à venda no site da Ria Livraria (CLIQUE AQUI).
Leia abaixo uma entrevista com a autora:
PERGUNTA: Poderia contar como foi o processo de construção da obra?
RESPOSTA: Comecei a escrever o primeiro conto em junho de 2013, tentando colocar em palavras o enorme espanto que senti ao ver o centro de São Paulo pegando fogo. Depois vieram outros contos despretensiosos, uma brincadeira de imaginar como os fatos políticos atravessam as vidas de pessoas comuns (como eu). O impeachment da Dilma. O descaso do Bolsonaro diante da pandemia. A cada acontecimento que me espantava, eu escrevia. Virou um jogo.
Como diz Freud, o ficcionista é como uma criança que brinca, e que leva muito a sério esse faz-de-conta inventado por ela. Freud diz também que a criança, muitas vezes, cria brincadeiras com aquilo que a faz sofrer. Por exemplo, ela pode aplicar injeções dolorosas em bonecas, depois de tomar uma vacina desagradável. Meu processo também foi nessa linha, principalmente na segunda metade do livro: criar ficção a partir do que me horrorizava, na necessidade de simbolizar, de sair de uma passividade absoluta diante da crise democrática e da ascensão da extrema-direita no Brasil. Diante da necessidade de fazer alguma coisa. Nem que fosse essa pequena grande coisa, que é escrever.
P: As escolhas das datas que dão títulos aos contos, como foi essa ideia?
R: Inicialmente, os contos tinham outros títulos, menos o último (“8 de janeiro de 2023”). Este foi o único que já nasceu com o título-data.
A decisão de publicar esses contos, que escrevi de forma íntima e esparsa por dez anos, nasceu dos horrores a que assisti na tevê, no dia 8 de janeiro de 2023. Fiquei chocada com aquelas cenas: as pessoas defecando, urinando, quebrando as sedes dos Três Poderes da República, sem resistência policial que impedisse essa loucura. A barbárie desembestada, sem qualquer freio civilizatório. Senti que precisava escrever um conto sobre isso, e que ele seria um ponto de chegada, o último conto de uma série que já estava esboçada desde 2013.
Enxerguei a articulação histórica entre Junho de 2013 e Janeiro de 2023. Enxerguei que aqueles contos despretensiosos poderiam costurar essa articulação, por meio da ficção. Quando notei que eles faziam sentido juntos, quis atribuir um senso de unidade, uma marca comum a todos eles – esse marcador temporal sugerido pelos títulos-datas.
P: As ideias para os enredos dos contos, poderia nos contar, apontando em dois contos?
R: Os enredos surgiram a partir de acontecimentos que me impressionavam. E eu gostava de pensar: como será que este ou aquele personagem viveria e contaria esta situação impressionante?
O conto “13 de julho de 2013”, por exemplo, narra um protesto contra os empresários responsáveis pelo transporte público no Rio de Janeiro. Foi durante o casamento da neta do Jacob Barata, conhecido como o “Rei do Ônibus”. Os manifestantes batizaram o ato de “Casamento da Dona Baratinha”. Tinha gente vestida de noiva, jogando baratas de plástico nos convidados, primeiro na igreja, no centro da cidade, depois na recepção, no Copacabana Palace. Achei aquilo hilário, essa potência criativa que o brasileiro tem, esse humor que às vezes esgota as discussões e tudo acaba em festa, mas outras vezes pode ter uma função importante de crítica social. O protesto parecia até carnaval, na beira da praia, em frente ao hotel mais chique da cidade. Mas, a certa altura, da sacada do Copacabana Palace, um dos convidados jogou um cinzeiro na cabeça de um manifestante que estava lá embaixo. Podia ter matado o garoto. Fiquei chocada com essa brutalidade. Chocada com essa cena: do alto do palácio, o rico quase comete um homicídio, porque está incomodado com o povão que faz barulho e atrapalha a festa da elite. Essa imagem me pareceu uma metáfora genuinamente brasileira, representativa daquilo que nos define: um país muito violento, com uma das piores taxas de desigualdade social do mundo.
Resolvi narrar a cena do ponto de vista de uma das socialites convidadas para a festa. Uma perua milionária, escandalizada com a falta de finesse desse povão imundo. Alguém que não aceita perder um milímetro dos seus privilégios, em nome de um mínimo de justiça social. Conheço mulheres assim. Busquei replicar o discurso delas. Achei divertido imaginar que, se elas lerem o conto, vão se identificar com a personagem. Mas outros leitores vão captar o senso de ridículo, de ironia, que procurei imprimir à forma como a personagem relata a situação.
R: Eu estava em casa, amamentando o meu bebê de 4 meses. (Risos.)
Outro exemplo: o conto “14 de janeiro de 2021” surgiu do meu horror diante do modo como o governo Bolsonaro lidou com a pandemia de Covid-19. Além das falas irresponsáveis e insensíveis do presidente diante de centenas de milhares de mortes (“Não sou coveiro”, “E daí?”…), fiquei horrorizada com o descaso do governo federal frente à crise de abastecimento de oxigênio nos hospitais do Amazonas. As pessoas morrendo sufocadas. Os jornais noticiaram que o Ministério da Saúde tinha sido alertado de que faltariam cilindros de oxigênio, mas não tomou nenhuma medida para evitar o problema, a não ser enviar cloroquina para os doentes (uma ideia delirante e negacionista). Achei isso tão absurdo. Dessa vez não deu para fazer humor, o conto é triste mesmo.
Pensando na diversidade brasileira, que procurei abarcar no livro (trazendo personagens de diferentes regiões, raças, idades, condições sociais etc.), tive a ideia de escolher um representante dos povos originários como protagonista desse conto. Um representante ou, melhor dizendo, um sobrevivente. E que morre porque o governo não dá a menor bola para as vidas das pessoas de quem ele deveria cuidar, por lei. Esses povos, que deveriam ser honrados e protegidos, porque são aqueles que sempre souberam cuidar do planeta de forma a preservar a existência humana na Terra, deveriam ser louvados e requisitados a nos ensinar como nos salvar do apocalipse antropocênico.
Imaginei um homem do povo Kokama, hospitalizado, esperando seu cilindro de oxigênio, que não chega nunca. E se fosse eu? E se fosse você?
É um conto triste, porque é o fim de uma vida que poderia ser salva. Mas também tem sua beleza, porque o limiar entre a vida e a morte se converte num espaço onírico, onde o protagonista se reencontra com os mitos e ritos ancestrais de seu povo, dos quais ele andava afastado.
P: E, Fernanda, onde você estava em junho de 2013?
Decidi seguir a sugestão da pediatra e oferecer o aleitamento excluso no peito, durante os seis primeiros meses do meu filho. Isso ajuda a prevenir doenças, fortalece o vínculo mãe-bebê… Mas não é fácil para uma mulher articular uma rotina de modo a estar disponível para o filho seis vezes por dia, a cada 3 ou 4 horas.
Depois da última mamada do dia, coloquei meu filho para dormir no berço e caí no sofá. Estava tirando leite do peito com a bomba, para armazenar mamadeiras extras no congelador, quando vi no Jornal Nacional: a Avenida Paulista em chamas. Policiais atirando para todos os lados, desorientados. Uma praça de guerra no centro da capital econômica e cultural do Brasil.
Nas semanas seguintes, acompanhei, aflita, a multiplicação dos protestos pelo país. Consegui ir a uma ou duas manifestações no Rio, e tive que correr da polícia e das bombas de gás, como todo mundo que protestava pacificamente ou não. Mas a impossibilidade de estar mais presente, de entender e acompanhar de perto esse fenômeno, foi o que me instigou a escrever. Em grande parte, o impulso de escrita veio do desejo de participar ativamente de um processo de transformação social no país.
Olhando para trás, vemos que muitas pautas importantes ganharam força, nessa última década, como os movimentos feminista, antirracista, anti-homofobia etc. Por outro lado, assistimos à ascensão de um ideário de extrema-direita no Brasil (e no mundo), propagado por um ambiente informacional de redes sociais desgovernadas, um bang-bang digital.
Esse livro nasce do cruzamento entre o desejo de exercer minha cidadania e o ímpeto artístico da escrita literária, que me acompanha desde criança, desde que comecei a juntar palavras para formar frases, e a juntar frases para formar parágrafos e textos.
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FERNANDA HAMANN: Escritora e psicanalista, com pós-doutorado em Teoria Literária e Literatura Comparada na USP. Publicou o romance Cativos (7Letras, 2015), a autoficção Coisas bizarras que você só descobre quando está grávida (Rocco, 2015) e o ensaio Nelson Rodrigues e a psicanálise (7Letras, 2022), entre outros livros. Organizou e participou da antologia Coronárias (Patuá, 2022), com contos de 16 autoras brasileiras. De 2019 a 2023, foi professora na Pós-Graduação em Escrita Criativa do NESPE. Em 2022, ganhou uma Bolsa Criar Lusofonia, do Centro Nacional de Cultura de Portugal, para escrever em Lisboa seu novo romance, em fase de finalização.