ENTREVISTA: Edson Cruz fala sobre o livro ‘Satori na Laje’, publicado pelo selo EditoRia

Edson Cruz lança ‘Satori na Laje’

O poeta Edson Cruz lança o livro Satori na Laje: orikais, poemínimos e outros cantos. Publicado pelo EditoRia, selo editorial da Ria Livraria, o autor concedeu uma entrevista ao site da livraria e falou sobre o processo de escrita da obra.

O poeta Edson Cruz se utiliza dos recursos da língua e de seus silêncios eloquentes para criar suas epifanias, que reverberam sua história pessoal, a consciência de sua negritude, e uma observação aguçada dos eventos neste antropoceno. Em seu percurso poético, apossa-se de outros idiomas e dizeres, navega no Atlântico Negro, vai até o Japão, Coreia, passa ligeiramente pela Grécia, volta pra Bahia, dorme entre os Yanomamis, ouve o uivo de Ginsberg e ousa buscar Don Juan no México. Uma odisseia negra e ameríndia.

Os poemas de Satori na Laje revelam a Poesia que emana das precárias construções da vida. O título já explicita o choque (e a síntese) entre a pobreza (histórica e social) de nosso tempo versus a riqueza (espiritual e poética) que nos imanta mesmo quando estamos desatentos. Se a vida é precária tal qual uma laje, é nela que alçamos o lume das estrelas.

Satori é um termo japonês do budismo zen que descreve um estado de iluminação súbita ou compreensão intuitiva da verdadeira natureza da realidade. E, como sabemos, nossa realidade atual e histórica é barra, não permite ingenuidade. A compreensão que o termo japonês elucida é daquelas que podem acontecer em qualquer lugar – em meio ao corre na cidade, no escuro da mata, num pipoco na madruga, num solo de Miles Davis ao longe, na voz de Clementina soando no vizinho, no churrasquinho de domingo na Laje – e a qualquer momento.

EDSON CRUZ – Nascido em Ilhéus, BA, é poeta, editor e mestrando em Escrita Criativa na Universidade de São Paulo. Fundou e editou a histórica revista digital de literatura CRONÓPIOS e a revista digital MNEMOZINE. Edita, no momento, a revista MUSA RARA (www.musarara.com.br). Estudou música, psicologia e letras. Têm 12 livros publicados, entre poesia, prosa, ensaios e infantojuvenil.

Leia a entrevista abaixo:

PERGUNTA – Como foi o processo de escrita do livro?

RESPOSTA – Começou com alguns haicais que vim escrevendo ao longo destes últimos anos, enquanto refletia e lia tudo sobre essa forma poética para planejar as Oficinas de Haicai que tenho ministrado. A primeira leva de poemas, já com este título, inscrevi no concurso de literatura da Ria, mas ainda estava um pouco verde.

Ao mesmo tempo, venho pesquisando sobre os Orikis, este gênero fundamental da literatura oral iorubá, que funciona como saudações poéticas, louvações ou invocações ritualísticas que celebram e ativam a essência de entidades, pessoas, lugares ou conceitos. São ferramentas de conexão espiritual, afirmação identitária e transmissão de conhecimento.

O exercício de juntar as duas tradições deu-se de forma natural. Isso não é novidade na poesia brasileira. O poeta Arnaldo Xavier já havia cunhado o neologismo Orikais para seus belos exercícios de fusão cultural e estética. Ricardo Aleixo, outro poeta admirável, já experimentou os seus também.

Os meus foram saindo aos poucos e fiz questão de manter a métrica ortodoxa do haicai, os versos com 5/7/5. Um desafio bacana para um poeta moderno e mais adequado do que um soneto.

O projeto foi se estendendo para poemas que dialogam com minha negritude, com a consciência da própria poesia e com as reflexões que foram amadurecendo depois de ter feito disciplinas no curso de Antropologia e ter estreitado o diálogo com quem considero ser, hoje, o maior pensador-orgânico do Brasil: Ailton Krenak.

PERGUNTA – Como foi a escolha dos textos para o livro, assim como dividir em partes?

RESPOSTA – Os poemas foram se enfeixando tematicamente e, depois, dividi-os em cinco partes: ‘Budanagô’ (cantos da negritude+orikais); ‘Lajeando estrelas’ (o poder encantatório das palavras); ‘Seres que dançam’ (três cantos da e para a floresta+três cantos em portunhol selvagem); ‘Polaroides’ (personagens memoráveis+orikais); e ‘Sabor de saquê’ (haicais urbanos, sem necessariamente a palavra da estação).

‘Sabor de saquê’ faz parte do projeto inicial do livro, com muitos acréscimos e muito descarte.

A resultante do livro, creio, sintetiza bem o meu momento de vida e de aprendizado. Um balanço, podemos encarar assim. Tudo mesclado e iluminado pela experiência de mais de trinta anos de prática budista diária.

PERGUNTA – Poderia explicar a sua relação com haicais?

RESPOSTA – Sempre fui atraído por este gênero poético. Mesmo antes de iniciar minha prática budista, já era apaixonado por Matsuo Bashô, pelas sacadas instantâneas do Leminski e pelos koans (um enigma, diálogo, história ou afirmação paradoxal utilizado pelos mestres do budismo zen como ferramenta de prática espiritual). O haicai, principalmente o praticado por Bashô e sua escola, herda essa busca pelo instante que ilumina, centelhas de iluminação, ou, não sendo muito rigoroso, um satori possível.

Iniciar-se na poesia lendo e escrevendo haicais é uma forma privilegiada de conectar-se com o que a poesia tem de melhor – centelha poética, revelação, concisão, trabalho com a imagem que salta, o ego deixado de lado, a reverência ao mundo natural.

Há toda uma ética e uma estética nesse aprendizado. E exige anos de apuração do olhar, de deambulação vagabundística, de baixar a bola da petulância do querer e, principalmente, do poder. Uma educação dos seis sentidos, pois a filosofia oriental postula um sexto sentido ou consciência, uma mente/coração que organiza nossa relação com o mundo e com os eventos.

O que o Budismo Nichiren me ensinou é que o nosso grande desafio é buscar tudo isso onde estivermos, com a vida que levamos, sendo quem nós somos. Essa é a mágica.

O exercício do haicai, ou quase haicai, ou poemínimos inspirados como eu o chamo, é mais uma ferramenta para isso, pelo viés da arte.

PERGUNTA – Há um poema dedicado ao escritor e ativista Ailton Krenak, conte sobre ele?

RESPOSTA – Leio e escuto tudo o que Krenak diz e escreve. Mando meus livros para ele e a gente conversa um pouco por whatsapp há anos. Nunca nos encontramos. O poema é um diálogo com algumas ideias e falas de seus livros que reverberam profundamente em mim. Krenak é um xamã moderno, um mensageiro entre mundos. Um ser de uma comunidade originária que conhece profundamente a cultura ocidental, o pensamento do homem vidrado em suas mercadorias, e, ainda por cima, entende e aprecia poesia.

Ele diz que seu mestre é o Davi Kopenawa. Fiquei pensando em como teria sido um diálogo entre o seu mestre, ele (Krenak) e meu mestre de vida Daisaku Ikeda (um japonês). Outra coisa que ele diz, e eu concordo cada vez mais, é que o livro mais importante do século é o “A queda do céu”. Quem ainda não o leu, deve parar tudo, evitar as distrações e mergulhar nele. Sairá outro ser.

PERGUNTA – Na obra, você homenageia diversos nomes da cultura, o que o motivou a celebrar em poemas essas figuras históricas?

RESPOSTA – São flashs de pessoas que me formaram, que me fizeram ser o que eu sou hoje artisticamente ou como pensador. Merecem ser celebrados. A arte é a flor da cultura, e quem disse isso também era um artista e imanta todo o livro sem ser nomeado

PERGUNTA – Você também intitulou o livro como “Uma Odisseia Negra-ameríndia”. Poderia nos falar mais sobre esse tema?

RESPOSTA – Percebi isso depois do livro pronto. O percurso todo do livro, nas várias partes que já mencionamos, revela minha odisseia pessoal em busca de uma Ítaca que eu possa chamar de minha (para usar a metáfora de Homero). Nas letras e na vida precisei mergulhar fundo na civilização ocidental, estudar grego antigo, música clássica, ler os clássicos, me enfastiar de Europa, para aprender a deixá-los de lado e chegar nesse lugar que sou eu, cada vez mais eu, negroameríndio.

PERGUNTA – Se fosse escolher um texto do livro para apresentar aos leitores, qual seria e o motivo?

RESPOSTA – Creio que o último poema do livro, um haicai, sintetiza tudo: minha trajetória, meu aprendizado, minha prática budista, a precariedade da vida, as inúmeras possibilidades que se apresentam quando você desperta (um outro nome para  Buda) e o próprio livro.

Ao abrir os olhos
três mil mundos num instante –
Satori na laje.

Comentário de 1

  1. Um ótimo! Livro…eu recomendo para todos os leitores. da forma física ou digital…!!!!!!…

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