Entrevista com Flávio Luís Sousa – vencedor do Concurso Literário da Ria Livraria

Leia uma entrevista com Flávio Luís Sousa, autor do livro de contos ‘À Terra Desce’, vencedor do Concurso Literário da Ria Livraria.


‘À Terra Desce’ apresenta onze contos que retratam a trágica complexidade da nossa formação nacional. Por meio de múltiplas linguagens, somos levados pelos caminhos e descaminhos que compõem a trama da vida, numa nação fundada sob o signo da violência. O ciclo das barbáries coloniais, a perpetuação do autoritarismo no país que se modernizava, a falácia da democracia racial, a miséria nas ruas das grandes cidades, a corrupção transformada em espetáculo midiático, o efeito devastador do garimpo ilegal na região amazônica. É de ouvido atento e pé ligeiro que percorremos cada uma dessas histórias fincadas no chão. Narradas numa prosa ágil e poética que, mesmo diante das condições mais improváveis, não perde de vista a beleza miúda, capaz de desnortear o medo e escancarar a vida.

:
Flávio Luís Sousa Nasceu em São Luís, Maranhão, em 1984. É autor do romance ‘A Caminho do Centro da Queda’ (2023), lançado pela Urutau.

PERGUNTA: Poderia contar a ideia do desenvolvimento do livro?

    RESPOSTA: Nosso país se funda num atoleiro de brutalidades civilizatórias. Ao coro dos descontentes, restava o angu amassado em pólvora, ou um penduricalho em formato de cruz, para tentar salvar o próprio pescoço. Tem uma frase de Ailton Krenak, em “Futuro Ancestral”, que resume bem isso: Como considerar uma história de pátria no meio deste cemitério continental? 

    Um ponto de partida é tentar olhar para a vida dos que não entram na história da pátria.

    Este livro vem daí. Dessa questão posta no meio do caminho. Não à toa, logo no primeiro conto, a narração é conduzida pelos olhos de um bebê indígena descobrindo o mundo, às vésperas do apocalipse celebrado em tom de primeira missa.

    P: Como foi o processo de escrita dos contos?

    R: Comecei a escrita deste livro em março de 2022. Mas as pesquisas tiveram início bem antes, ainda no ano de 2020. Crônicas da colonização, documentários, cartas de jesuítas, reportagens, ensaios, álbuns musicais, registros fotográficos, jornais antigos, revistas. O fato de cada conto se passar numa época e região diferente do país provocou essa diversificação das leituras. Foi o período em que reuni as minhas pilhas de notas mentais, incorporei outras linguagens. Isso sempre gera uma porosidade. Faz com que a realidade vivenciada por um personagem adquira ressonância no meu cotidiano e vice-versa. Escrever se impõe como numa necessidade diária. A depender da extensão do conto, são semanas ou meses nesse processo. A errância é elemento fundamental. Gosto de demorar. Me apego a algumas memórias ficcionais. A escrita é também uma companhia, preenche os dias.

    P: Poderia explicar a “trágica complexidade da nossa formação nacional” a partir do desenvolvimento do livro? 

    R: A nossa história de país, fabricada de cima para baixo, segue a lógica rasteira de tentar silenciar episódios que não se adequam aos cultivadores de mitos da pátria. Mas existem muitas outras leituras de Brasil. Protagonizadas por quem não consta nas páginas da História, ou por ela foi apagada. São essas existências humanas que põem este livro em movimento, ao destacar qual tipo de país, assombrado por eternos retornos, vem existindo noutras peles.

    A primeira missa na época colonial, visões de el dourado e terras prometidas, ao implantarem uma espécie de hierarquia na humanidade a ser civilizada, fundam imaginários que se desdobram na primeira missa que celebrou a construção de Brasília, promessa de modernidade instalada no coração do país, mas condenada a erguer um oásis para pouquíssimos, enquanto reproduzia em escala industrial as nossas antigas mazelas. O autoritarismo, a corrupção deslavada e o vale-tudo do garimpo na região amazônica se entrecruzam com narrativas idealizadas de colonizadores em busca de fortuna na “terra dos bárbaros”. As perseguições às minorias de hoje são também a história do indígena Tibira que, pela prática de sodomia, foi amarrado à boca de um canhão e despedaçado, durante a colonização francesa da ilha de Upaon-Açu, no Maranhão. “À terra desce” traz histórias sobre a crueza dessas existências humanas, com ou sem milagre derradeiro, em suas anônimas travessias por nossas encruzilhadas nacionais.

    P: O que te fez se inscrever no concurso da Ria, assim como qual foi sua reação em ser o primeiro colocado?

    R: A Ria Livraria promoveu um dos concursos de maior destaque literário do ano de 2024. Além de oferecer uma das maiores premiações, teve um destacado elenco de jurados formado por Ademir Assunção, Cidinha da Silva e Monique Malcher. Quando soube das inscrições, buscava uma editora para publicar o meu livro de contos, foi uma grata coincidência. Agora para ser bem franco, levei algum tempo até assimilar o resultado. Havia uma grande quantidade de inscritos e concorria muita gente competente.  Foi uma tremenda surpresa que se misturou com outras questões pessoais. Fazia seis meses, eu e a minha esposa tínhamos saído de São Luís para morar em São Paulo. Isso tudo fez com que o momento do resultado se tornasse algo bastante precioso.

    P: Se fosse escolher um conto do livro para apresentar aos leitores, qual seria e o motivo?

    R: Eu escolheria dois.

    “Sol de Ibirapitanga”, com o qual tenho uma ligação mais pessoal, pelo fato de se passar nas praias da ilha de São Luís e falar de três jovens músicos despertando para um sonho antigo de futuro, na última tarde do ano 2000.

    “Arrancado do peito”, que traz a experiência de descoberta do mundo por um bebê indígena, às vésperas do apocalipse trazido pela colonização, representando bem os violentos contrastes que viriam pela frente.

    Deixe um comentário

    O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *