
Um dos labirintos mais fascinantes que já li numa personagem foi o do príncipe Míchkin, do Idiota. Lembro-me de sentir vertigem em algumas passagens, com as demonstrações de absoluta inocência, bondade, misericórdia e total inabilidade para os jogos sociais que o cercavam. Sentia ainda raiva da incapacidade do príncipe de se defender, pena de sua sinceridade suicida, das confusões criadas apenas por ele ser quem era.
Não sei dizer se esse é o que mais me encanta, porque também tem o de Agnes, personagem de Kundera em Imortalidade. O labirinto dela, apesar de algumas semelhanças com o do príncipe idiota (como a falta de habilidade social) tende para uma introspecção, uma proteção da integridade de sua vida interna, que é desafiada por Laura (a irmã histriônica, que flerta com o marido de Agnes, que retribui o flerte).
O lugar onde Agnes circula é feito de exílio, discrição e silêncio em um mundo onde o grito é aplaudido e celebrado. Lembro ainda de uma cena em que Agnes, imaginando-se interrogada por uma figura de outro planeta, que a questiona se, numa outra vida, em outro mundo, ela gostaria de voltar a conhecer Paul, o marido. A resposta intrigante e perturbadora é: não.
Esses comportamentos desafiadores, que tensionam nossa imaginação e expectativa do outro, sempre me deslumbraram. Minha alma obcecada por coerência, com um radar anormal para contradições, sempre se instigou (e às vezes se deliciou) em investigar esses padrões na ficção, ao mesmo tempo em que se assombrou ao reconhecê-los na vida real. Passei a chamá-los de “labirintos”.
Hoje considero que a ficção os traz como retratos estilizados do real, que os autores, quais mestres da pintura, nos apresentavam em sua profundidade de campo, iluminação, acabamento, pinceladas. Tão maravilhosa e instrutiva é a arte. Assim como uma escultura exala essências de sua materialidade, ou uma melodia bem realizada conjura sentimentos, memórias específicas, os labirintos das personagens sempre me chegaram como alegorias dos labirintos das pessoas. Demorei para percebê-los, não para ser afetado por eles.
Já faz tempo que uso essas estruturas do mundo real como matéria para compor as minhas personagens. Uma boa personagem tem um labirinto que honra a realidade. Como o ódio e a inveja implacáveis de Iago em Shakespeare. Como Heleno, de Marcelino Freire, e sua obsessão por reparação de si através de um falecido amante e conterrâneo. Ou ainda como a obstinação do velho cubano de Hemingway, trazendo de volta para a terra a carcaça devorada de um peixe colossal que havia pescado, mesmo depois dos tubarões não lhe deixarem sequer um pedaço de carne.
Mas hoje quero falar mais dos labirintos do que das personagens. Quero abrir uma janela para vermos juntos a anatomia de um labirinto. Primeiro pelo prazer de descobrir (sendo esse o meu labirinto de aprender as coisas do mundo). Depois para compartilhar com você essa habilidade. Para quando acontecer de você vir um desses por aí, nos gestos dos outros, em seus discursos, nas suas reações, nos quartos, nas mesas e nas camas e, sobretudo, em si mesmo.
Ao invés de começar por esquadrinhar um labirinto, sua estrutura e sua essência, vamos passear juntos por alguns deles, e depois vemos o que têm em comum:
- O labirinto de garantir favores do outro sem nunca devolver nada em troca;
- O labirinto de existir apenas a partir da aprovação ou adoração do outro.;
- O labirinto de destruir o amor por medo de não ser amado; ou, mais aterrador ainda, por medo daquilo ser realmente amor;
- O labirinto de monopolizar a raiva, destituir nos outros o direito de se indignarem apenas para proteger-se;
- O de acreditar que não se merece (nunca) nada; muito menos ser feliz;
- O de criar condições para o fracasso, e depois odiar a si por ter fracassado;
- O de nunca se render e, não vivendo o milagre que a redenção traz, sucumbir, culpando o mundo por falta de resposta;
- O de amar os próprios algozes e também o seu gêmeo, o de amar o papel algoz;
- O de alimentar a solidão, enquanto se tem fome de companhia.
A lista é infinita, você pode adicionar na sequência os que perceber por aí.
Agora falemos um pouco da arquitetura desse labirinto. Ele normalmente tem apenas um protagonista e dificilmente seu dono vai permitir que este lugar seja ocupado por outro numa relação (real ou ficcional). Ou seja, alguém que performa um papel de inocência não permitirá que um outro seja mais inocente ainda em seu labirinto (daí o fato do principe Michkin ser o mais idiota e os demais todos serem ladinos). Também se observa isso ao tentar ocupar o lugar de um tirano em seu labirinto: raiva, sabotagem, agressão. Os outros espaços, os de submissão, estão disponíveis; os de autoridade, não.
Como uma consequência natural, no caso de não haver disputa de papéis, os labirintos se entrelaçam. De forma que vítima e algoz formam uma trama. Infortúnio e tragédia formam outra. Desamor e o desprezo, outra…
Ainda de outro dos meus labirintos, o das investigações, me pergunto: somos nossos labirintos? Quando não, me parece, é porque finalmente entendemos que eles podem ser instrumentos para nos desvendarmos. Como os devotos fazem no chão da Catedral de Chartres. Não estaríamos tentando chegar a algum lugar lá dentro, mas sim em busca do âmago de nossa identidade; usando o labirinto como veículo. Quando sim, é porque nos perdemos nele e acreditamos que alguma daquelas portas, passagens, vai nos libertar. Talvez numa curva logo ali…
Volto às personagens dos meus mestres. Às vezes passo horas pensando no que Dostoiévski viu, no que Kundera viu, para pintar aqueles encantadores e perturbadores labirintos em suas histórias. Daí lembro com carinho dos que vejo, nos outros e dos que percorro eu mesmo. Já não sei mais decidir qual deles me fascina mais. Acho que, no final, é sobre isso.
