
Que gentileza a dela vir assim. Quero sorrir, mas parece falta de educação. Ou será que o alívio lhe agradaria? Não é possível que seja trabalho fácil. Primeiro vejo suas canelas e estão vermelhas e finas da gente que implora. Seria loucura minha fazer isso, eu não queria nem ter vindo. Pode ser que ela as deixe expostas assim pra vir arrastando os outros sem tropeçar.
Ela para e me olha. Eu olho também. Tá me dando o quê? Chance de correr? Mas ela me encontrou ajoelhada do lado da cama e é aqui que eu vou ficar. Imagina se eu tivesse tanta convicção de viver. Seria uma mulher de mil anos. Seríamos inimigas.
Faz muito frio onde a gente vai, ela avisa. Escuto o que eu imagino ser um tom maternal. Eu vi nas novelas. Eu vi nos filmes. Ouvi na saída da escola. Ela, vindo me buscar, passando a mão na minha cabeça — onde está o seu casaco.
Silêncio mortal, só o tecido da minha roupa roçando quando eu me levanto e vou pro meu armário pequeno. Ergo a mão pro puxador, a porta vem comigo. Um cheiro horrível de coisa que não se move faz muito tempo, não vou sentir nunca mais. Esse é meu cheiro tem tanto tempo que posso até estar atrasada. Pode ser que ela esteja no meu quarto faz tempo e eu tenha visto só agora. Em retrospecto, dá até pra ver nos cantos, na minha mente, nesse armário.
No colar da minha avó. É meu desde que ela morreu. Mamãe tentou esconder mas está aqui — ela diz que eu encarnei a velha, bem assim, que eu coloco o colar e já acho que sou mulher. Ela esconde quando encontra e eu sou chamada de volta. Está sempre no primeiro lugar que eu procuro. Uma coisinha barata de pérolas falsas — tom da mamãe — mas que eu gosto tanto, tanto.
Levo pra escola por debaixo do uniforme. Quando peço pra ir no banheiro, fico lá por horas sentada em cima do vaso, com o colar na boca, passando a língua pelo ápice de cada perolazinha. Ensaio morder. Ensaio ser mulher. Ensaio ser velha. Um monte de coisa que eu nunca vou ser.
E funciona muito — penduro no pescoço, vai pra baixo da minha blusa e me sinto quente. Paro um pouquinho, porque me deu medo. E ela sente tudo, me chama desse jeito:
Tá pronto, Lucas?
Que canalha, eu achando que a gente tinha um trato. Não se pode nem morrer como se é. Vou morrer como me fizeram.
Tô pronta.
Ela olha pra mim, dos pés até a cabeça e diz assim engraçado que ninguém nunca pega casaco.
